“Toda vez que eu dou um passo, o mundo sai do lugar.”
Esse verso é de uma canção do compositor pernambucano Siba. Uma verdadeira síntese da complexidade do que é viver em sociedade, já que somos simultaneamente seres sociais e individuais; e ambas as dimensões se intercruzam e constituem nossa forma de estar no mundo, de interagir e produzir realidades.
Mas o que isso tem a ver com a Comunicação Não-Violenta (CNV)?
Seguindo nosso diálogo sobre a CNV em nível sistêmico, quero propor aqui uma reflexão sobre nossa constituição social. Sei que para muitas pessoas, esse tipo de proposta pode parecer sem sentido ou até datada. Porém, se observarmos as narrativas que dominam os espaços por onde transitamos, veremos que elas reforçam, o tempo todo, uma mensagem que supervaloriza a individualidade em detrimento do coletivo. Nessa toada, muito do que poderíamos aprender e refletir sobre nossa vida social não acontece por puro movimento de invisibilização dessa importante dimensão de nossa vida.
Fazendo esse “movimento empático” conseguiremos compreender porque Educação, Saúde física e mental, Trabalho, Inovações tecnológicas, Filosofia, Direito, perspectivas de futuro, etc. são campos que estão largamente organizados por noções que se apoiam em um lógica individual. A influência de nossos arranjos sociais em todas essas áreas é desconsiderada ou abordada de maneira superficial. Os discursos dominantes apresentam formas de explicação da vida que, subliminarmente, defendem uma aposta em um “super-humano” que, individualmente, conseguirá resolver seus conflitos, curar suas dores e desenvolver suas potencialidades independentemente de seu contexto social.
Como seres sociais, nós somos inevitavelmente interdependentes. Logo, não faz sentido cuidar somente da nossa individualidade.
Esse “canto da sereia” tem nos levado a parâmetros elevadíssimos de adoecimentos, destruição e desencantamento do mundo, já que, como disse no início desse texto, somos seres sociais. Se estamos aqui hoje, lendo essas palavras, isso somente se tornou possível pelo investimento e dedicação de muitas pessoas. Pessoas que, em nome de um acordo social, cuidaram e zelaram para que tivéssemos condições de ler, escrever, refletir e problematizar nossos padrões de existência.
Se a socialização é uma condição fundamental para a existência humana, nos debruçar sobre como essa socialização acontece foi e é uma demanda para todas as gerações, visto que as necessidades que buscamos atender serão sempre marcadas ou mesmo conformadas pelos contextos sociais.
Segundo Marshall Rosenberg, sistematizador da CNV, acerca de 8 mil anos atrás, a humanidade foi adotando formas de distinção entre grupos humanos que a constituíam, sendo estes grupos classificados como sendo mais ou menos dignos de uma vida plena. Com isso, a linguagem foi sendo adaptada para que pudesse contribuir para a desumanização das pessoas; medida que consolidava e legitimava este sistema que estava sendo criado.
De lá até os dias atuais estamos então, a partir dos parâmetros ocidentais, condicionadas(os/es) a nos comunicar olhando primeiramente para fora, para o atendimento das expectativas de outras pessoas. Aprendemos a pensar com base em julgamentos e a bi-partir as experiências em “boas” ou “más”, em “certas” ou “erradas”, em “verdadeiras” ou “falsas”. O binarismo foi imposto como referência máxima; um enquadre limitador das possibilidades da própria vida. Além disso, aprendemos a objetificar pessoas, a hierarquizar, a querer controlar o outro e uma série infindável de outros tantos pensamentos e ações que reforçam aspectos de negação da vida plena e da autonomia das pessoas. A imposição de determinados padrões se tornou a regra. As relações de poder foram se estabelecendo a partir de determinados interesses mantidos pela via da violência.
É neste cenário que a CNV opera, visto que diante de tamanhas opressões, objetificação do outro e limitação da vida, a CNV se apresenta como possibilidade de ruptura. Como oportunidade de questionar e desconstruir todo esse arsenal.
Quem acompanhou esse texto até aqui, possivelmente já entendeu que estamos falando de uma empreitada complexa e árdua quando dizemos de adotar a CNV como prática de vida.
Para exemplificar, te convido a pensar em uma situação que você viveu em interação com alguém cujo resultado foi diferente do que você desejava. Algo simples como uma conversa com um amigo, um pedido pra alguém da família, algum ajuste de rota no trabalho… Enfim, algo que tenha a ver diretamente com o seu bem-estar e o de quem você tem um convívio mais próximo. Por essa análise pessoal, você já dimensionou a jornada que temos pela frente para que de fato possamos cocriar realidades que atendam o que está vivo em nós, respeitando a humanidade do outro e, assim, viabilizando vidas mais maravilhosas.
Agora te convido a pensar quando em cena, ao invés de você e alguém próximo, estão grupos, povos ou comunidades com trajetórias marcadas por experiências de oportunidades, reconhecimento e acessos a dimensões da vida muito assimétricas. Grupos em interação mas que, alguns deles, foram historicamente definidos como “inferiores”, como “maus”, como “exóticos”, “menos humanos” e, por tudo isso, menos dignos de viverem sua plena humanidade.
Na história da humanidade, acabamos por definir que alguns seres são mais “humanos” que outros.
Desenvolver um olhar e raciocínio sistêmicos se refere a esse movimento de ampliar os sentidos de compreensão da realidade e acolher dimensões macroestruturais que estão aí direcionando nossos passos e possibilidades de existência, sendo vistas ou não.
É reconhecer que no mundo ocidental foi desenvolvido um processo histórico que se funda em princípios individualistas, e que a partir da era moderna, ideias como livre arbítrio, poder de escolha e privacidade individual passaram a ser amplamente defendidas por estratos da sociedade que possuíam recursos materiais e amparo cultural para reivindicarem tais liberdades. Aliás, liberdades que desde seu nascedouro foram pensadas apenas para algumas parcelas da população geral.
O tipo de organização social que estava se estruturando jamais estendeu suas premissas a todos os seres humanos. Ou, melhor dizendo, as premissas da modernidade foram sim estendidas a todos os seres humanos; a que questão é que um percentual muito pequeno da população global era considerado humano. A todo o restante, a dominação, desumanização, exploração e a opressão.
Podemos ampliar nosso olhar sobre as nossas relações (e a CNV pode ajudar nisso).
Por isso (e muito mais!) que assumir a CNV enquanto referência para construção de nossas relações, pressupõe reconhecer que nossas trajetórias pessoais não estão soltas em uma espécie de “limbo” constituído apenas pelas relações diretas que temos. Antes, pelo contrário, o convite-desafio é para que acolhamos que, inclusive essa visão, largamente difundida, é fruto de determinadas narrativas sustentadas por sistemas violentos e alienadores.
Interdependência, pertencimento, reconhecimento, reciprocidade são necessidades de cunho social que precisam ser integradas à nossa experiência de modo ampliado e coletivo, sob pena de que se assim não for, estejamos reforçando as exclusões, apagamentos e violências contra as quais nos movimentamos. Ainda que “sem intenção” e com a melhor “boa vontade”.
Estejamos atentas!